Mudança na jurisprudência afeta contribuintes, que devem R$ 170 bi à União
Empresas em recuperação judicial que têm dívidas tributárias estão com dificuldade de manter os seus processos. Tribunais de pelo menos três Estados – São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná – mudaram a jurisprudência e, agora, exigem a apresentação do documento de regularidade fiscal para que o procedimento tenha continuidade.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), além disso, alguns ministros estão validando decisões proferidas por juízes de varas de execuções fiscais que permitiram a penhora ou o bloqueio de bens das devedoras.
Essas situações, até bem pouco tempo, eram raramente vistas no Judiciário. A mudança deve-se, em grande parte, à nova Lei de Recuperações e Falências (nº 14.112/2020), que entrou em vigor em janeiro e começa a ser discutida nos tribunais.
Empresas em recuperação judicial acumulam um volume enorme de dívidas tributárias. Só com a União são cerca de R$ 170 bilhões, segundo levantamento atualizado em abril pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). Desse total, uma parcela baixa, de R$ 24,2 bilhões, está em situação regular – o contribuinte apresentou garantia à dívida ou aderiu a um parcelamento, por exemplo.
A apresentação da certidão fiscal (CND) sempre constou em lei – desde 2005 – como um dos requisitos ao processo de recuperação. Mas essa regra era flexibilizada com o argumento de que não havia um parcelamento de dívidas tributárias adequado para as empresas em crise.
Com a nova lei, porém, essa argumentação deixa de existir. As empresas em recuperação agora têm opções. Podem escolher entre duas modalidades de parcelamento: em até 120 vezes ou usar prejuízo fiscal para cobrir 30% da dívida e parcelar o restante em até 84 meses.
Além disso, passaram a ter mais vantagens, com a vigência da nova lei, nas chamadas transações tributárias. Elas podem, por exemplo, pagar as suas dívidas em até 120 meses e com até 70% de desconto em juros e multas. Os demais contribuintes conseguem, no máximo, 50% e o parcelamento em até 84 vezes.
Os desembargadores têm levado essa mudança em consideração e atendido os pedidos da União contra as decisões de primeira instância que permitiram o processo de recuperação judicial sem a certidão fiscal. Pelo menos 34 recursos foram apresentados desde que a nova lei entrou em vigor.
A primeira decisão sobre esse tema no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) foi proferida, recentemente e de forma unânime, pela 2ª Câmara de Direito Empresarial. Os desembargadores deram prazo de 60 dias para a empresa comprovar a regularidade – por meio de liquidação ou parcelamento das dívidas perante a Fazenda Nacional. Caso contrário, disseram, a companhia terá a falência decretada.
“Havendo legislação aplicável, não há como o Poder Judiciário decidir contrariamente”, afirma o relator, desembargador Ricardo Negrão, em seu voto (processo nº 2248841-13.2020.8.26.0000).
A empresa afetada nesse caso é a Maralog Distribuição, com sede em Catanduva, no interior do Estado. A PGFN informou, no recurso apresentado aos desembargadores, que a companhia acumula mais de R$ 58 milhões em dívidas com a União.
“Exigir a CND nesse caso foi um grande perde perde”, critica Julio Mandel, sócio do Mandel Advocacia, que atua para a companhia. Ele diz que o dinheiro da venda de ativos estava disponível para pagamento de todo o passivo trabalhista e extraconcursal (credores não sujeitos ao processo de recuperação). Mandel chama a atenção que, na falência, esses credores têm preferência de recebimento. Eles vêm antes do Fisco.
O TJ-SP tem duas câmaras de Direito Empresarial. A 1ª deve se manifestar pela primeira vez sobre esse tema na próxima quarta-feira. O processo que está em pauta envolve a Ellc Máquinas e Equipamentos e tem como relator o desembargador Cesar Ciampolini (processo nº 1059817-42.2018.8.26.0100).
Recentemente, em decisão monocrática, num outro caso, Ciampolini atendeu pedido da União. Ele suspendeu o cumprimento do plano de recuperação da Ponto Final Participações e Empreendimentos – empresa ligada ao Grupo Davene. A companhia ficou impedida de pagar os credores quirografários e de vender ativos.
Segundo a PGFN informa no processo, a empresa deve mais de R$ 170 milhões. A decisão de Ciampolini foi dada em caráter liminar, até que a Câmara julgue o caso (processo nº 2215483-23.2021.8.26.0000).
Luiz Deoclécio, diretor da OnBehalf, que atua como administrador judicial nesse caso, diz que existe discussão sobre formação de grupo econômico e dívidas tributárias que seriam de outras empresas. “É uma decisão para se acompanhar”, diz.
Em relação ao mercado, como um todo, acrescenta, é pouco provável que as devedoras consigam seguir adiante sem ao menos demonstrar que a dívida tributária está organizada e dentro do seu plano de recuperação.
No Rio de Janeiro (TJ-RJ), a Hotéis Othon foi afetada. Os desembargadores da 16ª Câmara Cível, em decisão unânime, interromperam o processo de recuperação por conta das dívidas tributárias. A União afirma, no processo, que são R$ 770 milhões (processo nº 0046087-14.2020.8.19.0000).
A virada na jurisprudência está sendo confirmada com a nova lei, mas antes – durante o ano de 2020 – já havia sinalização de que isso poderia ocorrer. A PGFN vinha fazendo um trabalho forte, principalmente nos tribunais superiores, desde que as transações tributárias passaram a ser permitidas.
Em setembro, o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), levou essa argumentação em conta e reverteu uma decisão do STJ que permitia a recuperação judicial de uma empresa sem certidão fiscal. Foi uma liminar e durou pouco. Acabou sendo suspensa pelo ministro Dias Toffoli, que assumiu a relatoria do caso com a ida de Fux para a presidência.
Entre uma decisão e outra, no entanto, o Tribunal do Paraná (TJ-PR), decidiu o tema. O julgamento ocorreu no Órgão Especial por meio de um incidente de arguição de inconstitucionalidade (processo nº 0048778-19.2019.8.16.0000).
No STJ, ainda não há notícias de que se esteja exigindo a certidão fiscal. Mas se vê um outro efeito da nova lei: a validação de decisões de juízes das varas de execução fiscal – o que também tem forte impacto sobre as empresas em recuperação.
Antes, nos casos de constrição de bens, a empresa recorria à Corte, por meio de conflito de competência, e os ministros invalidavam esses atos. Afirmavam que somente o juiz da recuperação judicial, na Justiça Estadual, poderia decidir sobre essas questões.
Essa discussão existe porque as dívidas fiscais não são tratadas na recuperação judicial. A cobrança é feita por meio de uma via própria – a execução fiscal. Ocorre que muitas das vezes há interferência do juízo universal. Isso é visto, por exemplo, nos casos em que a constrição pode prejudicar o plano de pagamento dos credores particulares ou pelo bem ser considerado essencial para o funcionamento da empresa.
A nova lei, no entanto, trouxe um regramento específico sobre isso. O parágrafo 7-B do artigo 6º permite o andamento das execuções fiscais durante o processo de recuperação e determina que o juiz da recuperação só poderá liberar bens e valores considerados essenciais ao funcionamento da empresa se indicar outros bens e valores em substituição.
Os ministros têm levado esse dispositivo em conta para, agora, validar os atos da Justiça Federal. O que se tem, por enquanto, são decisões proferidas de forma monocrática. Uma delas, entre as mais recentes, é do ministro Antonio Carlos Ferreira (CC 182740). Há decisões semelhantes proferidas pela ministra Isabel Gallotti (CC 181335) e também pelo ministro Marco Aurélio Bellizze (CC 181302).
“A jurisprudência está se inclinando para reconhecer que não há conflito antes da necessária cooperação judicial entre o juiz da execução e da recuperação judicial”, diz o procurador Marcelo Kosminsky, chefe do Núcleo de Acompanhamento Especial da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) no STJ.
O procurador Filipe Aguiar, chefe de Defesa Nacional na 5ª Região, afirma que a Fazenda Nacional “busca a preservação da atividade empresarial viável e dos benefícios sociais dela decorrentes através do equacionamento do passivo, inclusive fiscal”.
Ele diz que “o risco de prosseguimento das execuções fiscais, se não houver negociação em curso, e no momento da homologação do plano de recuperação, com a exigência de regularidade fiscal, são relevantes incentivos para que se busque atingir esses objetivos, e inibem tentativas de fraude e de desvirtuação do instituto da recuperação judicial”.
Fonte: Valor Econômico